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Listentory

10 de November de 2023by Fabio Salaverry0

Há alguns anos, um texto me fez refletir muito sobre uma característica que eu tinha quando era vendedor: eu falava mais do que ouvia.

Em 2005 participei de um workshop na sede da organização em que trabalhava na época, em Colorado Springs, CO, US, ministrado por professores da Purdue University. O tema desse workshop era “Effective Communication”. Esse workshop teve duração de quatro dias. Adivinhe qual foi o tópico que ocupou o primeiro dia inteiro? A pista está no título deste artigo. “Listening Skills” ou “Habilidades de Escuta” se você preferir.

Quando pensamos em comunicação, logo pensamos em como nos expressar melhor – como falar em público, como fazer apresentações, como conduzir reuniões, não é mesmo? Pois bem, normalmente nos esquecemos do principal fator para que a comunicação seja, de fato, efetiva, eficaz e eficiente – o “como” escutamos.

Você já parou para pensar em quantos tipos de escuta há?

  1. Escuta COMPETITIVA – Uma vez eu estava na fila, esperando o banco abrir, eram quase 10h00 e havia vários senhores e senhoras à minha frente. Dois senhores estavam conversando: “Amigo, hoje acordei com uma dor no joelho, quase não consegui levantar da cama…”, ao que replicou o outro: “Dor no joelho? Você está reclamando de dor no joelho? Eu tenho uma dor nas costas já faz mais de 20 anos que não me aguento em pé. Estou aqui e já está me doendo demais”. Esse é o tipo de escuta onde buscamos informação para podermos competir. O meu é melhor, é maior, é mais importante, dói mais, etc.
  2. Escuta COMBATIVA – O marido, percebendo que sua esposa estava mais quieta que de costume, perguntou-lhe: “o que você tem, amor?”, ao que ela respondeu: “NADA”. Você já passou por uma situação dessas? A partir desse momento, tudo o que você disser, poderá ser usado contra você. Esse tipo de escuta utiliza um filtro – tudo o que for dito será refutado, não importando se a informação procede ou não.
  3. Escuta SELETIVA – Há uma cena no filme Debi & Loide muito interessante. Um dos protagonistas, personificado por Jim Carrey, pergunta à mulher pela qual ele cruzou uma parte do país, no intuito de devolver uma maleta, pois se sentia apaixonado por ela. Quando a encontrou em Aspen, ele lhe perguntou: “quais são as chances de nós sairmos algum dia?”, ao que ela responde de imediato: “uma em um milhão” e virou as costas e saiu. O personagem de Jim Carrey então ficou super contente, vibrando até, e disse “eu tenho uma chance!!!”. Esse tipo de escuta seleciona somente o que interessa, o que quer escutar.
  4. Escuta PASSIVA – O marido está sentado no sofá da sala, olhos grudados na televisão pois é a final do campeonato. Faltam só cinco minutos para terminar a partida, que está empatada até o momento. Um atacante do seu time leva a bola até a grande área e é derrubado pelo adversário. O juiz apita… Nesse momento, sua esposa senta-se ao seu lado e começa a falar. Ele então, sem virar para ela, sem nem saber o que ela está falando, começa “hã-hã”, “ah, tá bom”. Esse tipo de escuta é aquele que você não presta a menor atenção. Tem outra coisa que, para você, é mais importante do que escutar o que a pessoa está falando. É muito comum ver pessoas conversando enquanto respondem seus e-mails ou suas mensagens no “whatsapp”. Será que estão escutando de fato?
  5. Escuta ATIVA – Outra noite tive a oportunidade de jantar no “Olive Garden”, um restaurante que já fui várias vezes nos Estados Unidos e que agora está chegando aqui no Brasil. Um dos meu pratos favoritos é o salmão. Quando chegou meu pedido, o salmão não estava no ponto certo. Havia passado do ponto e, por consequência, estava seco e amargoso. A garçonete veio nos perguntar como estava tudo, e informei sobre o salmão. Imediatamente ela comunicou ao gerente que veio à nossa mesa e perguntou: “A Aline me informou que o salmão não está no ponto certo, gostaria de saber exatamente o que ocorreu, para que possa informar ao chefe”. Disse a ele minha percepção. Ele não me interrompeu. Fez uma pausa e perguntou: “o senhor quer que eu peça outro?” Disse a ele que não, porque à noite não costumo comer muito. “Então, sua sobremesa será por minha conta.” Esse é o tipo de escuta que demonstra interesse por quem está falando. Não expressa julgamento, quer saber mais detalhes, busca mais informação. É o tipo de escuta que promove uma comunicação de fato efetiva.

Voltando ao texto que li há alguns anos e que volta e meia o releio, para não esquecer desse princípio, chama-se ESCUTATÓRIA, escrito por Rubem Alves. Abaixo, a transcrição desse texto para que você também possa refletir – como você anda escutando?

Escutatória – Rubem Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas – coitadinhas delas – entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que moram em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos, não são as árvores e as flores. Para ser ver é preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos.(Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonita é a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise…) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma dela contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia – a enfermeira nunca acertava – dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim esperando, evidentemente, o aplauso, admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada…” A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.” Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg – citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.” Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico”), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório pra não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma.) Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essencais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.” Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.” Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U” definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino…” Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. É música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia que de tão linda nos faz chorar. Pra mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto…

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